Wesley Gimenez
Este artigo não é só a resenha de um bom filme, mas a análise de um caso real, em que o abuso, sofrimento e crime são confrontados com inteligência, sagacidade e resiliência. A superação do trauma em busca da prisão do culpado. A força de vontade em seguir em frente, superando medos e denunciando abusos. A recusa em ser vitimizada e adquirir força para perseverar até o fim, são elementos essenciais a uma mentalidade forte, que se previne, mas que também sabe suportar o sofrimento e encará-lo com a força necessária para suplantá-lo. Nem sempre é possível prevenir um ataque. Então, qual é a melhor saída? Será que entrar em pânico e entregar o raciocínio ao medo é a melhor saída? Será que estar mentalmente preparado ou preparada não é a escolha que um caveira faria? Além disso, o valor da palavra da vítima deve ser discutido, e é preciso evitar que um círculo de terror se perpetue para além do crime ou abuso sofrido. É por isso que a história de Lisa Mcvey deve ser contada aqui.
Palavras-chave: Violência. Abuso. Perspicácia. Superação. Inteligência.
Analisar tudo que se ouve, vê e observa já é uma ação habitual em um Caveira. Portanto, até mesmo nos filmes que, eventualmente, temos um tempo para assistir, é preciso prestar atenção a um detalhe, frase ou contexto que nos ensine algo. Recentemente, por indicação de um amigo, assisti ao filme ?Acredite em mim?, que conta a história real do sequestro de Lisa Mcvey.
A sinopse é basicamente a história de uma garota de 17 anos vivendo uma situação de abuso em sua própria casa. Tendo de trabalhar até altas horas da noite, ela volta para casa e é sequestrada por um assassino em série. Lutando pela vida, Lisa entra na mente do criminoso, que desiste de matá-la. As habilidades de memória e a sagacidade de Lisa leva a polícia da cidade de Tampa, na Flórida, a pegar o criminoso.
O que esse artigo pretende é discutir como a mentalidade de Lisa se assemelha ao que já é ensinado dentro do Krav Maga e como isso a ajudou a sair viva de uma situação em que várias outras mulheres foram mortas de forma brutal. Além disso, destacar a coragem e a história de superação do trauma que apenas alguém com uma mentalidade diferente poderia vencer.
Além disso, é preciso discutir o valor da palavra da Vítima. A Lei brasileira, recentemente, destacou a necessidade de dar especial valor ao relato de quem sofre abuso e violência, principalmente em casa. A vitimologia estuda, não só as implicações para a vítima da exposição de sua dor, mas as recorrentes violências sofridas no processo de registro do crime sofrido, que, por vezes é pior que o trauma, fazendo com que muitos casos não venham a público e a sensação de impunidade aumente.
Bobby Joe Long havia estuprado e assassinado pelo menos 10 mulheres. Além disso, se descobriu uma série de mais de 50 estupros nas cidades onde passou. Bobby foi casado e teve dois filhos antes da mulher pedir o divórcio devido às agressões e violência doméstica. Ao ser preso, o assassino em série admitiu ter um prazer sádico no planejamento dos crimes e execução da ?caçada?. Lisa Mcvey foi a única vítima que ele deixou viver. Afinal, o que ela tinha de diferente?
Quando Bobby, 2019, recebeu a injeção letal por seus crimes, Lisa disse em uma entrevista que teve de perdoá-lo para poder virar a página. Mais que isso, ela agradeceu a ele. Sua declaração foi ?Se eu pudesse falar a ele diria ?Obrigado por me escolher e não outra garota de 17 anos de idade?. Outra garota de 17 anos não seria capaz de lidar com isso da mesma forma que eu?. Essa frase já demonstra o tipo de pessoa forte que Lisa é, porém, não sem que a vida a forjasse dessa forma.
Desde os 14 anos Lisa era vítima de abusos sexuais e psicológicos pelo namorado da Avó. A Avó de Lisa acobertava e incentivava os abusos. A mãe (se é que se pode chamar alguém assim de mãe e avó) não se importava com nada que se relacionasse à filha, chamando-a de ingrata quando esta reclamava dos abusos. Enfim, a vida de Lisa era um inferno na Terra.
A questão é que esse inferno a preparou para encarar o sofrimento e suportar dor. Não é a maneira ideia de ?treinar? isso, mas a experiência no sofrimento a fez encarar o sequestro com a mente mais limpa e ordenada que qualquer outra pessoa. Ao invés de entrar em um ciclo de pânico e desespero, ao ser agarrada às 2 horas da manhã enquanto voltava do trabalho, Lisa teve pouco segundos para raciocinar sobre o que ela tinha, ao alcance, para preservar a vida.
Bobby era bem maior e mais forte. Ela era franzina e jovem. A atriz que a interpreta, Katie Douglas, tem 1,52 de altura e apenas 45 Kg, o que destaca a diferença de massa. Lisa não tinha muitas opções, ela não sabia lutar. O abuso iria acontecer e ela sabia disso. A questão era entender como ela poderia preservar sua vida. Sua saída inicial foi cooperar e tentar entrar na mente do criminoso. No entanto, não foi passivamente cedendo ao que Bobby queria, ela deixou pistas em seu carro (sangue da menstruação, na realidade, mas no filme ela morde o dedo), deixa cabelos no carpete do carro, conta os degraus até o segundo andar onde era seu cativeiro, decorou a direção para a qual Bobby se dirigiu.
Enfim, ela aproveitou cada segundo para estudar seu algoz e descobrir pontos de fraqueza psicológica, visto que um ponto fraco físico era mais difícil. Ela descobriu que Bobby odiava mulheres por causa de uma decepção amorosa, falava com ele como uma criança de 4 anos, gerando empatia e senso de proteção ao invés de violência. Tentou seduzi-lo para minimizar a violência nos abusos e gerar empatia, bem como tocar em seu rosto e assim poder entender sua feição. Tudo isso ela utilizou em meio ao terror de 26 horas seguidas de abuso. Ela perdeu a conta de quantas vezes foi estuprada, mas raciocinou cada segundo buscando um meio de sair viva. Talvez alguém com outra mentalidade já teria se entregado à morte ou entrado em crise e provocado uma violência maior do agressor. A capacidade de ?esfriar? o ímpeto assassino de Bobby fez com que Lisa sobrevivesse.
Lisa conseguiu convencer Bobby a deixá-la viva. Após esse tormento, no entanto, ela passa por diversos estágios do que se chama de re-vitimização. Sua avó e mãe não acreditam em sua história, muito menos o namorado da avó, outro abusador. Ao ir à polícia, duas detetives também não dão valor à sua fala, exatamente pela tenra idade e riqueza dos detalhes relativos ao crime.
Esse processo de re-vitimização não é tão raro. A própria instituição da delegacia da Mulher é uma tentativa de minimizar esse processo durante o atendimento policial. Além disso, como destaca o Promotor de Justiça e deputado Fernando Capez:
o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que nos crimes contra a dignidade sexual, bem como nos praticados em ambiente doméstico e familiar a palavra da vítima possui especial relevância, notadamente quando corroborada por outros elementos probatórios acostados aos autos.
Capez está demonstrando que em crimes sexuais, além dos de violência doméstica, notadamente os tipificados na Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), a palavra da vítima deve ter relevante consideração. Embora abusos desse direito ocorram, é preciso evitar a re-vitimização, dando ouvidos às queixas e investigando o caso. Foi o que Larry, detetive do departamento de combate a crimes sexuais fez. Ao dar ouvidos a Lisa, abriu-se a oportunidade de prender Bobby. Como o próprio Larry diz à Lisa no filme, a sagacidade dela fez em poucos dias mais do que a polícia conseguiu em mais de seis meses.
A fragilização da vítima, no entanto, ante aos policiais, pessoas próximas, estrutura fornecida pelo estado, proteção e demais necessidades, faz com que haja um receio quanto a denúncia desses tipos de crime. Um caso parecido, também com uma menina de 17 anos, Kate Moir, em 1986 só conseguiu ser solucionado porque uma novata na polícia, Laura Hancock acreditou na história também cheia de detalhes de Katie e conseguiu prender o famoso casal de assassinos australianos David e Catherine Birnie. Katie decorou detalhes do cativeiro, a música que tocava e o nome do estuprador por causa de um rótulo de remédios.
Por medo da re-vitimização e do julgamento das pessoas, Rhonda Stapley manteve em segredo um abuso sofrido quando ela tinha 21 anos. Ao aceitar uma carona de um bonito rapaz chamado Ted, que ela não conhecia, sua vida virou um inferno sendo estuprada e sufocada várias vezes, escapando por um milagre. Somente com a prisão do famoso Ted Bundy ela percebeu que, se tivesse denunciado, talvez várias outras garotas estariam vivas.
É essa mentalidade forte que precisa ser ?treinada? na vivência de um estilo de vida seguro. Ninguém está isento de passar por qualquer violência. Contudo, é preciso ter ferramentas para encarar o medo, a dor, o sofrimento, com raciocínio suficiente para conseguir janelas de oportunidade. Se não for para reação, ao menos para sobreviver com o menor custo possível e com chances de realmente reunir provas contra o criminoso.
A mentalidade caveira é esse treinamento. Não só na capacidade reativa, na mentalização de um enfrentamento às últimas consequências. Não é só ser capaz de morder a jugular do agressor até abrir um espaço na artéria ou quebrar a traqueia impedindo-o de respirar e concluir o crime. A mentalidade caveira também é prevenir-se, é entender a maldade humana preparando-se para ela. Tendo capacidade de argumentação, manipulação mental, dissimulação e explosão. E além disso, ser capaz de ter a seriedade necessária para denunciar e seguir em frente até ter certeza de que ninguém mais passará pelo sofrimento que você passou.
Este artigo tratou do caso real de Lisa Mcvey e do valor da palavra da vítima para elucidação de crimes. A violência deve ser combatida, por vezes, com maior violência, se estritamente necessário e possível. No entanto, se não foi possível, deve ser vencida com inteligência, sagacidade, resiliência e superação. A história de sobreviventes de serial killers e criminosos sexuais nos mostra como é preciso discutir o perigo da re-vitimização, além de sermos sinceros em admitir que, por vezes, será preciso encarar o pior medo de frente.
A entrega do raciocínio ao pânico só piorará a situação. A melhor saída é estar preparado para o pior, mesmo buscando e esperando o melhor. Quando a reação for impossível, é preciso utilizar a sagacidade e inteligência para encontrar meios de sair da situação-limite, seja pela dissimulação, pela manipulação ou pela janela de oportunidade para a reação e a luta pela vida. Não é algo fácil, como nos mostra a história de Lisa, no entanto, é completamente possível. Lisa hoje é policial e ajuda mulheres vítimas de crimes sexuais. Ela fez dos limões que a vida deu, uma bela limonada. Apesar da frase ser brega, é a pura verdade. Shalom!
CAPEZ, Fernando. Valor probatório da vítima no processo penal. 9.Set.2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-set-09/controversias-juridicas-valor-probatorio-vitima-processo-penal. Acesso em 18. Nov.2022.
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GALDINO, Giancarlo. Filme que relata uma das histórias mais brutais e perturbadoras dos Estados Unidos acaba de chegar à Netflix. 02. Fev.2022. Disponível em: https://www.revistabula.com/47906-filme-que-relata-uma-das-historias-mais-brutais-e-perturbadoras-dos-estados-unidos-acaba-de-chegar-a-netflix/. Acesso em 17. Out.2022.
GRAFF, Mateus. 7 relatos perturbadores de vítimas que escaparam de serial killers. 27.Out.2017. Disponível em: https://www.fatosdesconhecidos.com.br/7-relatos-perturbadores-de-vitimas-que-escaparam-de-serial-killers/. Acesso em 17. Nov.2022.
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VIEGAS, Camila. ?Acredite em mim: A história de Lisa McVey?: A história real do filme da Netflix. 19.Mar.2022. Disponível em: https://www.metroworldnews.com.br/entretenimento/2022/03/17/acredite-em-mim-a-historia-de-lisa-mcvey-a-historia-real-do-filme-da-netflix/. Acesso em 18.Nov.2022.