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?A BOLA É MINHA!?

Quando o Ego é maior que a técnica.


Wesley Gimenez



RESUMO


Este artigo discute o perigo, para as artes marciais, do apelo ao ego e à necessidade de se provar ?dono? de determinada técnica ou luta marcial. As artes marciais existem há milênios e não se sabe quem ?inventou? o soco ou o chute.


O uso das mais diversas técnicas respondem aos limites do corpo humano e sua capacidade de superar esses limites de forma mais rápida e eficiente. Se dizer ?dono? de uma habilidade física é tentar ?vender terreno na Lua? ou ?cobrar pela luz do Sol?.


Este trabalho rebate essas e outras falácias que, apesar da infantilidade, revelam que o desejo por controlar as ?regras do jogo? tem o objetivo de elevar o ego e gerar alienação geral, sem apreço ao aluno e sim uma ganância desenfreada por poder e influência, não alcançada por competência.


Palavras-chave: Egolatria. Artes marciais. Habilidades. Invenção. Maturidade.


 

1        INTRODUÇÃO

 

Quando era criança, os jogos de futebol eram violentos. Não havia chuteiras e o campo tinha mais areia que gramado. Assim, na base do chinelo de dedo ou descalço, em times que se dividiam entre ?com camisa? e ?sem camisa?, as disputas eram praticamente um embate campal. Verdadeira guerra (hoje não me atrevo a praticar esses esportes violentos).


Nesse entremeio, em que as crianças e adolescentes eram pobres, sempre havia o ?dono da bola?. O garoto da rua cujo pai tinha dinheiro para dar de presente, no aniversário dele, uma bola de ?capotão?, como chamávamos, e assim, com a condição de ser o primeiro a ser escolhido, lá ia o ?playboy? para o campinho com todo mundo atrás dele.


Geralmente o ?dono da bola? não tinha condições físicas para aguentar muito tempo em campo, dessa forma, quando estava perdendo ou se machucando, uma das estratégias infantis era segurar a bola, ameaçar encerrar o jogo e dizer ? A bola é minha!?.

Na infância, apesar da raiva, o jeito era ceder que o ?perna-de-pau? batesse o pênalti, ou a falta, já que, afinal, ele era o ?dono da bola? e sem ele o jogo acabava.


A parte boa de crescer é que ?teoricamente?, você não deveria encontrar os ?donos da bola? no seu ambiente profissional. Ledo engano. Há milhares deles. E eles ainda não cresceram. Continuam pirracentos, continuam mordazes, continuam tentado ditar as regras sobre aquilo que eles mesmos não dominam.


A ameaça continua a mesma: ?A bola é minha!? dizem eles. Quem inventou a ?técnica? fui eu! Quem ensina desse jeito sou eu! Enfim! Frases imaturas e similares. O bom de crescer é que não precisamos mais nos submeter ao ?dono da bola?, e vou explicar o porquê.


2        As artes marciais e a ?titularidade das técnicas?.


A lei de direitos autorais, Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998[1] destaca em seu artigo 8º, inciso I que ?as ideias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais?, não são passíveis de serem protegidos por direitos autorais[2].


Por isso, o soco não é patenteável, nem a técnica de imobilização ou contra-ataque. Métodos e procedimentos podem receber nomes notórios por sua disseminação e aceitação coletiva, contudo, não se pode dizer que, eu, Wesley criei o ?soco Wesley? e que quem quiser quebrar o queixo de alguém terá que pagar royalties para mim.


Pode ser que determinada técnica seja extremamente copiada de um vídeo meu e viralize com meu nome, assim, o ?soco wesley? (hipotético) se tornaria uma técnica associada ao meu nome, porém, jamais creditada a mim como o ?inventor do soco?, já que desde que a humanidade é humanidade, o homem se defende com as mãos.


Outra lei, agora a número 9.279/1996[3] regulamenta a patenteabilidade de determinada utilidade. Também seu artigo oitavo diz que ?é patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial.?, assim, patentear um modelo que atenda a esses requisitos e que seja comercializado é o mínimo que se deve ter para receber uma patente.


Não há novidade no soco, ou chute, ou jeito de se agarrar ou projetar alguém. Os limites de movimentação do corpo humano oferecem opções praticamente idênticas a todos os seres humanos do planeta, diferindo em velocidade, força, poder de carga, flexibilidade e variações de movimento, contudo, ninguém consegue criar uma ?novidade?, apenas adaptar um movimento já existente para sua realidade e compleição física.


Dessa forma, por mais que alguém se ache ?dono? de determinada técnica, arte marcial, ou conjunto de métodos, não é possível exigir essa titularidade ou patente sem comprovar que se trata de um produto industrial comercializável e inovador. O próprio Krav Maga teve uma grande batalha pelo direito de uso do nome e também da titularidade da técnica, a exemplo da decisão emanada no processo 0370970-32.2009.8.19.0001[4]:


... ainda que se admitisse que a autora detém a marca KRAV-MAGÁ especificamente para a atividade que pretender fazer crer nos autos. Incabível imaginar que tal se fizesse possível, pelo simples motivo de que tal reconhecimento importaria dizer que a prática da atividade desportiva que se nomina KRAV-MAGÁ somente poderia lecionada, praticada ou explorada pela autora ou por quem dela obtivesse autorização. Seria o mesmo que afirmar que a palavra VOLEI, que nomina um tipo de esporte, ou mesmo qualquer outra prática desportiva, somente poderia ser lecionada com exclusividade por esta ou aquela pessoa. 


A mesma coisa se aplica aos chamados ?métodos e técnicas de livramento ou defesa pessoal?. Se um aluno meu, que estudou exclusivamente comigo, resolve abrir um ?método XYZ? de Krav Maga, e ensinar as minhas técnicas, como poderia processá-lo? Não posso. Ele é que teria que correr atrás de fazer bem melhor do que eu para alcançar o mesmo grau de eficiência e capacidade que atingi nesses anos todos lapidando as técnicas do Krav Maga dentro do método caveira.


Além disso deveria se esforçar para gerar tal engajamento e influência nas redes sociais ao ponto de me ultrapassar como maior canal do mundo de Krav Maga e defesa pessoal. Julgando que ele consiga fazer tudo isso sem que eu o alcance, ele obviamente é melhor que eu e merece tudo isso. Outro motivo para eu não poder processá-lo.


Assim, quanto à titularidade de ?técnicas e golpes?, há mais latidos e egos inflados que verdadeiramente a preocupação em manter a qualidade das artes de autodefesa ou lutas de forma geral. O orgulho precede a queda. A arrogância é irmã da ruína.


3        O legado de Imi Lichtenfeld. (1910-1998)


O criador do Krav Maga, o húngaro Imi Lichtenfeld, percebeu que as lutas que conhecia, do boxe à greco-romana precisavam de adaptações quando a situação envolvia riscos de morte ou em diferentes ambientes ou situações de múltiplos agressores ou inimigos armados. Dessa forma, a fim de treinar o exército judaico, foi preciso, durante a década de 40, criar uma forma de luta, que unia a efetividade de diversas artes marciais à simplicidade requerida pela guerra.


A genialidade de Imi não estava só na simplicidade dos golpes, mas da humildade de utilizar aquilo que era mais útil nas diversas artes marciais e evoluir tais técnicas para fazê-las adaptáveis a qualquer corpo, situação ou circunstância hostil. Imi não imitava a criança do ?A bola é minha! ?. O criador do Krav Maga não se dizia ?dono? da técnica, pelo contrário, é bem conhecido que Imi utilizou-se de vários conhecimentos marciais para a criação do Krav Maga.


É exatamente essa capacidade de evolução das artes marciais, a humildade de se perceber a necessidade de nunca subestimar o inimigo, sair rapidamente de situações de crise e ainda ser o mais rápido e objetivo possível na reação que se tornaram o legado de Imi e a óbvia base na qual o Krav Maga Caveira se assenta.


Não somos orgulhosos ou prepotentes, respeitamos efetivamente o legado de Imi, que não desejaria que sua técnica eficiente se prostituísse, cedendo ao orgulho de homens gananciosos ou abaixando a cabeça para crianças mimadas que comparam seu método a imitações baratas de defesa pessoal.


A essência do legado de Imi está no coração do que o Krav Maga, independente do método, mas sobretudo no método Caveira, se prega: Volte vivo para casa! Não importa quem seja o ?dono da bola? se no fim do jogo você perde a chance de jogar novamente, ou porque se machucou, ou porque morreu.


4        CONSIDERAÇÕES FINAIS


Este artigo tratou dos malefícios da ganância, do culto ao ego, do ciúme e do despeito nas artes marciais. De pessoas que se acham ?o dono da bola? quando o assunto são técnicas de sobrevivência. Nesse cenário, o que importa é levar o crédito, nem que seja ?no grito?, na manha de um menininho de cinco anos de idade no campinho do bairro, com a bola debaixo do braço.


Todos os dias coloco vídeos de técnicas na internet, um universo de conteúdo que privilegia quem cativa, quem é eficiente em comunicar uma verdade, uma técnica, um modo de pensar ou agir. Quando vejo milhões de pessoas assistindo meus vídeos e tentando imitar meus golpes e técnicas, fico lisonjeado.

Pode até ser que professores pelo Brasil estejam me imitando ou ?plagiando? e se com isso, algum aluno aprendeu e voltou vivo de uma situação limite, fico feliz ainda que ele não saiba que foi por uma técnica que eu ensinei.


No fim das contas, o tempo mostra quem é de verdade e quem é de mentira. Como citou Abraham Lincoln ?Você pode enganar poucas pessoas por muito tempo, muitas pessoas por pouco tempo, mas não pode enganar todas as pessoas por todo o tempo?. Caveira!



 

5        REFERÊNCIAS

 

PEGN ? Pequenas Empresas, Grandes Negócios. É possível patentear uma técnica de ginástica? Disponível em: http://revistapegn.globo.com/Revista/Common/0,,EMI320967-18248,00-E+POSSIVEL+PATENTEAR+UMA+TECNICA+DE+GINASTICA.html. Acesso em 26.Jan.2022.

JUSBRASIL. Processo nº 0370970-32.2009.8.19.0001. ? 2018. Top Defense Ltda E Outros (Adv (S). Dr (A). Luis Fernando Ribeiro Matos Junior (Oab/Rj-088406) X Yaron Alexander Linchteinstein E Outro (Adv (S). Dr (A). Julio Guidi Lima Da Rocha (Oab/Rj-159657) Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/processos/44369311/processo-n-0370970-3220098190001-do-tjrj. Acesso em 27.Jan.2022.

BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Diário Oficial da União, 1996.

BRASIL. Lei nº. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Diário Oficial da União 20 fev 1998. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm



[1] BRASIL, 1998

[2] PEGN, 2021.

[3] BRASIL, 1996

[4] JUSBRASIL, 2018