A Intensidade da Força: Uso Progressivo, Diferenciado ou Seletivo?
Wesley Gimenez
RESUMO
Este artigo descreve a importância do uso legítimo e correto do emprego de força na contenção da ameaça. Não basta só ter o poder de agir e saber agir, mas, encontrar os limites dessa ação e empregá-la da melhor forma possível, a fim de que, não só a legítima defesa possa ser bem caracterizada como também a ameaça seja realmente contida ou aniquilada.
A partir de um estudo bibliográfico, exploratório e qualitativo, buscou-se analisar três conceitos relacionados ao uso da força: o uso progressivo, o uso diferenciado e o uso seletivo aplicando suas indicações à defesa pessoal. Conclui-se que o uso progressivo traz a ideia de um escalonamento ininterrupto, o uso diferenciado pressupõe adequação e conveniência, e o uso seletivo preza pela utilidade e capacidade de avaliação na circunstância de perigo. O uso da força exige uma nova mentalidade, capaz de se adaptar, escolher, reagir adequadamente e realizar tudo que for preciso para sobreviver.
1 INTRODUÇÃO
Dentro dos estudos de segurança pública existem três conceitos muito interessantes: Uso Progressivo, Diferenciado ou Seletivo da Força. Os três conceitos destacam a quantidade, progressão e intensidade da aplicação da força para contenção de uma ameaça, seja à integridade física do próprio agente que a aplica quanto a terceiro ou a um bem público tutelado pela lei.
Os conceitos são aplicáveis aos agentes de segurança pública, notadamente, policiais militares, civis, penais, federais e etc. No entanto, podemos utilizar os princípios e valores norteadores destes dois conceitos ao exercício da força de reação ou uso de habilidade marcial, oferecendo maior direcionamento a quem se propõe a defender a sua integridade física e a dos seus familiares.
Assim, parto da explicação mais técnica, ligada aos documentos que direcionam a atividade dos aplicadores da lei e da ordem para um contexto mais genérico aplicando os princípios a todos os que, um dia, podem se ver em uma situação em que o combate seja necessário, e quer profissionalmente ou não, tem a missão de defender a integridade física de outrem.
2 QUAL A IMPORTÂNCIA DO CONTROLE NO USO DA FORÇA?
Atribui-se a Aristóteles, uma frase interessante: “Qualquer um pode zangar-se – isso é fácil. Mas zangar-se com a pessoa certa, na medida certa, na hora certa, pelo motivo certo e da maneira certa – não é fácil”[1]. Essa frase trata de algo maior que o simples autocontrole ou a capacidade de administrar o fervor da raiva. Nesta frase está incutida a capacidade de domesticar a força que se tem, de modo a direcioná-la ao alvo correto, na proporção e intensidade adequadas ao momento certo.
Essa é uma habilidade que deve existir na atividade policial. Há poucos segundos para decidir quem é bandido e quem não é. A linha entre ação legal e abuso de autoridade é tênue e a mídia faz grande esforço para deixá-la praticamente invisível. É uma constatação fácil, afinal, sensacionalismo vende mais que a verdade.
Mesmo assim, é preciso perceber que as emoções, principalmente a raiva e a frustração são capazes de diminuir sua capacidade de julgamento em momento de estresse.
Daniel Goleman, no clássico livro ‘Inteligência Emocional’ destaca a frase de Benjamin Franklin: “A raiva nunca é sem motivo, ainda que nem sempre seja um bom motivo”. A frase, mais do que denunciar a dificuldade que é controlar a raiva e assim, domesticar o impulso que leva ao abuso no uso da força, também destaca, alinhando-a à frase de Aristóteles que identificar o grau de raiva certa, do jeito certo, contra a pessoa certa é uma tarefa que exige preparo e treinamento mental e físico. Afinal, é ao comando da mente que o corpo obedece, seja para o bem, seja para o mal.
É focado nessa percepção de controle do impulso e das emoções, que os conceitos de uso progressivo e uso diferenciado se aplicam. Nessa pesquisa, o objetivo geral é o de analisar a aplicabilidade destes conceitos na defesa pessoal.
Especificamente, descreve-se os conceitos, apresenta-se as similaridades entre o nível necessário de percepção que o policial e quem defende a si próprio necessita para identificar a ameaça e reagir apropriadamente, e por fim, sugestiona-se atitudes práticas de uso da força dentro dos limites da legítima defesa e da prevenção do combate.
2.1 USO PROGRESSIVO, DIFERENCIADO OU SELETIVO?
No final de 2010 foi publicada a portaria interministerial nº 4.226 que estabelece as diretrizes sobre o uso de força pelos agentes de segurança pública. Esse documento se pauta sobre tratados, convenções e princípios orientadores internacionais, principalmente editados nas Assembleias das Nações Unidas.
Dentre os objetivos da portaria estão, de forma resumida, a diminuição da letalidade e maior orientação e padronização nos procedimentos realizados pelas forças públicas de segurança. Os artigos, notadamente o segundo, deixa bem claro: “O uso da força por agentes de segurança pública deverá obedecer aos princípios da legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência”.[2]
Estes princípios exigem de quem deve utilizar a força o cuidado de apenas exercer atos que sejam legais, necessários para afastar a ameaça, sendo utilizados os recursos possíveis, de forma proporcional, moderada e conveniente. Ainda que se apliquem à força de segurança, o cidadão comum, que se defronta com uma situação de risco iminente também precisa avaliar sua reação a partir destes mesmos princípios.
Juliano José Trant de Miranda[3] trata de cada um desses princípios aplicando-os às atitudes policiais. Fazendo um paralelo com as explicações de Miranda, podemos destacar que aquele a quem chamamos de ‘Caveira’ e que possui uma mentalidade de proteção, de combate e de prevenção também age considerando estes princípios.
É importante destacar, que ainda que o cidadão não tenha o dever de agir em uma situação de crime, por vezes, a sua inatividade pode coloca-lo em uma situação de vítima. Cada ‘caveira’ é o seu próprio segurança pessoal, seu guarda-costas, além de também ser o protetor de sua família. Enquanto, em posição macro, o policial protege a sociedade, em posição micro, cada ‘caveira’ responsabiliza-se por sua própria proteção e a de sua família.
Um dos documentos que embasam a Portaria interministerial 4.226/2010 é o PBUFAF (Princípios Básicos sobre Uso da Força e Armas de Fogo) adotados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Infratores, realizado em agosto de 1990 na capital cubana, Havana. Tal documento elenca em seu segundo princípio que governos e organismos devem oferecer um leque amplo de opções do uso ‘diferenciado’ da força por seus agentes.
Durante muito tempo, o termo ‘Uso Progressivo da Força’ foi mais utilizado, contudo, Fábio Manhães Xavier[4] ensina que o termo traz a ideia de progressão, de algo crescente, ascensional. Não é o que se depreende dos documentos internacionais que tratam do assunto. Analisando o PBUFAF e o código de conduta dos encarregados da aplicação da lei (CCEAL) adotado pelas Nações Unidas em 1979, Xavier adverte que o termo ‘Uso diferenciado da Força’ se torna mais útil, visto tratar do uso de força em caráter adequado, proporcional e coerente.
Juliano Miranda ainda defende o termo ‘Uso Seletivo da Força’ que pode ser entendido como “a adequação do meio a ser utilizado pelo policial na contra reação ao nível de agressão oferecida pelo suspeito, podendo ser da verbalização ao uso letal da força sem escalonamento”[5]. Isso quer dizer que, dentre as opções disponíveis, tanto o policial quanto o ‘caveira’ deve selecionar a que atende à urgência do momento, podendo ser a força letal ou não.
Um exemplo direto pode ser um caso de tentativa de estupro, em que, para evitar o ato, a mulher ‘caveira’ tenha que arrancar o globo ocular do estuprador com os dedos ou deslocar a sua traqueia levando-o à óbito, sem outra medida anterior de contenção dada à rápida percepção do grau de inutilidade da mesma.
2.2 CAPACIDADE DE REAÇÃO PROPORCIONAL AO ATAQUE
O ‘caveira’ age em seu dia a dia com a integridade e dentro dos padrões de legalidade. Ao enfrentar a violência urbana, os padrões de legalidade não se alteram, de forma que a reação a uma situação de risco deve estar dentro das características da legítima defesa (excludente de ilicitude).
O caveira não é um ser ‘violento’, muito pelo contrário, age com a violência necessária a repelir qualquer ameaça evitando maiores danos a si e a outros. O conhecimento mínimo necessário sobre os limites legais do uso da força também deve ser de interesse do ‘caveira’, tanto quanto é dever do policial ou agente de segurança conhecer.
Da mesma forma, a ação ou a reação, a partir do principio da legalidade, deve também amparar-se no autocontrole, agindo de forma proporcional, como resposta a uma ação iminente de perigo, além de, observando o ambiente, ser preciso analisar se é mais viável fugir a ter que lutar. A sobrevivência urbana exige a habilidade de refletir rapidamente sobre a conveniência e oportunidade para agir, além da proporcionalidade da reação.
O treino de Krav Maga ensina técnicas letais, contudo, também ensina contenções simples, imobilizações e modos rápidos de se livrar de uma situação desagradável com o uso moderado de força e energia, sendo possível avaliar até onde se deve ir na reação a uma importunação, a uma ameaça desarmada e a uma ameaça armada.
Como já ressaltado em artigos anteriores, há uma mentalidade que precisa ser formada, para que a serenidade existente na mente preparada possa refletir em atos legais, moderados, proporcionais, mas com capacidade reativa suficiente para aniquilar a ameaça latente.
2.3 A SERENIDADE DA FORÇA INTERIOR (MENTALIDADE CAVEIRA).
Em seu livro ‘A arte da guerra segundo os Seals da marinha norte-americana’[6], os autores Rob Roy e Chris Lawson descrevem que a adaptabilidade e o autoconhecimento são essenciais para a sobrevivência.
Os autores utilizam a frase ‘Adapte-se ou pereça’ e acrescentam algo muito importante: “Se você compreende as crenças e valores que conduzem a seus comportamentos, você será mais capaz de adaptar-se às mudanças e responder quando uma mudança é necessária”.[7]
O ensino de Roy e Lawson tem tudo a ver com a ideia de ‘Mentalidade Caveira’. A capacidade de se adaptar, de ser flexível, resiliente, de tomar decisões rápidas em momentos de tensão e estresse, de fazer o que for preciso e agir na proporção certa para sobreviver e manter-se dentro da legalidade é resultado de um duro treinamento físico e mental. Acredito que o corpo nunca estará onde a mente nunca esteve primeiro.
Conhecer-se, avaliar-se, adaptar-se são meios necessários para ter força suficiente dentro de si para ser capaz de aplicar, de forma capaz, o uso progressivo, diferenciado e seletivo da força.
Policiais aprendem modelos diversos de aplicação, e um dia poderemos discorrer mais sobre tais modelos, contudo, é preciso ter a percepção de que só se consegue ter serenidade na aplicação da força quem já treinou sua mente e seu corpo para este momento.
Quanto mais você gastar energia física e mental em treinos realistas, menos sangue e energia serão gastos em situações de tensão e perigo. Maiores serão as probabilidades de um retorno tranquilo ao lar, bem como maiores as chances de se manter seguro, bem como ter a capacidade de proteger, tanto seus bens quanto sua família.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa não pretende esgotar o assunto, haja vista que há muito que se dizer sobre ele. No entanto, apresentou-se uma correlação direta entre os conceitos existentes nas escolas de formação de agentes de segurança pública sobre o uso da força e a necessidade desse conhecimento para o ‘caveira’, que assume a responsabilidade da própria segurança e da família.
Conclui-se destacando que o uso progressivo traz a ideia de um escalonamento ininterrupto, o uso diferenciado pressupõe adequação e conveniência, e o uso seletivo preza pela utilidade e capacidade de avaliação na circunstância de perigo.
Ao caveira e ao policial é necessário o cultivo de uma mente preparada e um corpo pronto à reagir como convém, avaliando aspectos legais, oportunidade, necessidade e conveniência.
Conhecer seus limites, pontos fortes e fracos, ter adaptabilidade ao ambiente e às sensações dentro dos momentos de risco, preparar-se fisicamente e mentalmente para esses momentos são sugestões valiosas para a condução de uma vida mais segura.
No fim, tudo desemboca na necessidade de uma nova mentalidade.
Um modo não só de pensar, mas de se preparar, de antecipar e reagir. Uma mentalidade capaz de ser preparada e formada, flexível e ao mesmo tempo sólida o suficiente, para uma vez tomada a decisão, ser capaz de fazer todo o necessário para sobreviver.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Portaria Interministerial 4.226 de 31 de Dezembro de 2010. Estabelece Diretrizes sobre o Uso da Força pelos Agentes de Segurança Pública. Disponível em: https://dspace.mj.gov.br/bitstream/1/3871/2/PRI_GM_2010_4226.html. Acesso em 03.Ago.2021.
GOLEMAN, Daniel. Inteligência Emocional. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
MIRANDA, Juliano J. T.O Uso Progressivo da Força x Uso Seletivo da Força. 2009. Disponível em: http://www.bibliotecapolicial.com.br/upload/documentos/O-EMPREGO-DO-CAO-DE-POLICIA-21069_2011_8_7_43_53.pdf . Acesso em 03.Ago.2021.
ROY, Rob; LAWSON, Chris. A arte da guerra segundo os Seals da marinha norte-americana. São Paulo: Cultrix, 2016.
XAVIER, Fábio M. A importância da formação na mudança de paradigmas no uso da força. 2009. IN: Cadernos Temáticos da CONSEG Coordenação Geral da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública Ministério da Justiça – Ano I, 2009, n. 05. Brasília, DF
[1] Aristóteles. Disponível em: https://www.pensador.com/frase/Mjk2MzA/ Acesso em 03.Ago.2021.
[2] BRASIL. Portaria Interministerial 4.226 de 31 de Dezembro de 2010.
[3] MIRANDA, Juliano J. T.O Uso Progressivo da Força x Uso Seletivo da Força. 2009.
[4] XAVIER, Fábio M. A importância da formação na mudança de paradigmas no uso da força, 2009.
[5] MIRANDA, Juliano J.T, 2009.
[6] ROY, Rob; LAWSON, Chris. A arte da guerra segundo os Seals da marinha norte-americana, Cultrix, 2016.
[7] Ibidem, p. 165